Semiótica: Objecto, Sujeito e Prática

«Não circunscrevemos a semiótica ao regime do signo. Pensamo-la antes na confluência de dois níveis semânticos não sígnicos: o da textualidade/discursividade e o da enunciação. E enquanto num caso acentuamos o domínio da escrita, o domínio do objecto textual, e suspendemos a relação com o contexto, no outro, colocamos a ênfase nas dimensões da prática discursiva, interacção, intersubjectividade, reflectividade, intencionalidade e comunicação. Quer isso dizer que pensamos a semiótica como disciplina da significação» Moisés Lemos Martins

1.

O termo que a tradição filosófica Ocidental traduziu como signo é, na tradição latina, signum e, em grego, σημειον (sémeion).

O signo surge-nos como termo técnico-filosófico no século V a.C., com Parménides e com Hipócrates que o encontram no léxico dos médicos e semiólogos que os antecederam. σημειον surge, muitas vezes, como sinónimo de tekmerion (“indício”, “sintoma”) e uma primeira distinção decisiva entre os dois termos só é desenvolvida na Retórica de Aristóteles.

O signo é na sua definição clássica aliquid stat pro aliquo. Como dirá Charles S. Peirce , “um signo é algo através do conhecimento do qual nós conhecemos algo mais” daquelas coisas que não poderemos nunca conhecer plenamente. Como dizia um poeta da Grécia antiga “os deuses conhecem as coisas directamente, aos homens resta conhecer a partir de indícios (tekmerionai)”. O signo remete-nos, pois, para uma certa ideia de representação, ínsita à linguagem, quer “das coisas invisíveis” quer das “coisas visíveis”. De resto, pelo signo como que se gera um encontro particular entre uma determinada invisibilidade (ou indizibilidade) que não se conforma nunca plenamente no que é visível (ou dizível).

No Tratado do Signo, escrito pelo português João de São Tomás em 1637, a formulação aliquid stat pro aliquo, surge assim definida: “aquilo que representa à potência cognitiva alguma coisa diferente de si”. O signo é: “aquilo” (aliquid) “que esta por” (stat pro) “aqueloutro” (aliquo), ao que J. De S. Tomás acrescenta “à potência cognitiva”. O conceito de potência cognitiva é aristotélico. Aristóteles, em resposta aos eleatas, pensa os seres como constituídos de potência e acto. O acto é a determinação, aquilo que um ser num determinado momento é; a potencia é a indeterminação determinável, o conjunto de possibilidades que uma coisa, por acção do acto, pode vir a ser (Deleuze chamar-lhe-á devir); João de S. Tomás usa o termo para se referir às possibilidades cognitivas e comunicativas (possibilidades de ver, possibilidades de tocar etc.).

A semiótica Moderna sublinhará esta ideia. Para Charles Pierce o processo semiótico é uma relação triádica entre um signo ou representamen (primeiro), um objecto (segundo) e um interpretante (terceiro). Um signo ou representamen é uma coisa que representa uma outra coisa: o seu objecto. Antes de ser interpretado o signo é pura potencialidade: um primeiro. O objecto é aquilo que o signo representa, uma entidade física ou mental: um segundo, porque não pode nunca existir sem o representamen, que é o seu primeiro: “O objecto de um signo é uma coisa, o seu sentido é outra coisa. O seu objecto é a coisa ou ocasião à qual se aplica; o seu sentido é a ideia que ele liga a esse objecto.” (C.P. 5.6). O interpretante é terceiro: ele opera a mediação entre o representamen e o objecto. O primeiro é agente, o segundo paciente, o terceiro a acção através da qual um influencia o outro. Peirce distingue o objecto imediato (the Object as cognized in the Sign), isto é, o objecto tal qual o signo o representa, e o objecto dinâmico (the Object as it regardless of any particular aspecto of it to be), o objecto tal como ele é, exterior ao processo de sentido. O objecto é para Pierce o conhecimento – uma espécie de ideia a que Peirce chama de fundamento/”ground” – que já possuímos de uma coisa e nos permite concebê-la como signo.

Charles Morris nos seus Fundamentos de uma Teoria dos Signos de 1938, dirá que algo é signo apenas porque um intérprete o constituiu como signo no processo de semiose (a isto chama-se, em semiótica, imanência e generatividade do signo).

O que signo é produzido através da performance de um sujeito a quem compete, na relação intersubjectiva (na semiose) fazer-sentido.

O mecanismo inferencial que rege o stat pro é construindo semioticamente; o “fumo” só é signo do “fogo” porque um sujeito competente desenvolveu o exercício lógico de implicação “p ) q”.

Do signo é consensual:

a) a sua definição, traduzida pela tradição clássica como aliquid stat pro aliquo. O signo como categoria tensiva (vide Zilberberg), produzido por um sujeito competente no interior do processo da semiose, que “representa” subalternamente um “original” ausente.
b) a descrição da sua estrutura. Devemos aos estóicos a interpretação do signo como um elemento que põe em relação três entidades: um significante, um significado ou lekton e um objecto que é uma realidade exterior referida pelo signo. O lekton é a capacidade de um significante evocar um “objecto”, é a capacidade do primeiro elemento evocar o terceiro – fumo – fogo – através de uma operação gerada pelo sujeito semiótico (resultado de um acto discursivo).
Saussure falou de entidade de duas faces, significante e significado, impondo uma nomenclatura que se tornou dominante; Hjelmslev na relação entre dois functivos, o plano da expressão e o plano do conteúdo, envolvendo uma nomenclatura mais operativa para a semiótica estrutural.
c) a sua tipologização. A qualidade de “estar por para” é operada por diversos tipos de signos: sinais; sintomas; ícones; índices; símbolos; nomes.
d) a sua taxinomia. Dada a natureza relacional dos signos, classificar signos pressupõe classificar as relações sígnicas. Umberto Eco, na esteira de Charles S. Peirce, expõe sistematicamente as diversas classificações de signos: os signos diferenciam-se pela fonte; pelas inferências a que dão azo (relação por associação no caso dos signos artificiais; e por inferência no caso dos signos naturais); pelo grau de especificidade sígnica; pela intenção e grau de consciência do emissor; pelo canal físico e pelo aparelho receptor humano; pela relação ao seu significado, podendo ser unívocos, equívocos, plurívocos ou vagos; pela replicabilidade do significante; pelo tipo de relação pressuposta com o referente; pelo comportamento que estipulam no destinatário, podendo ser, Segundo Morris, signos identificadores, designadores, apreciadores, prescritores e formadores; finalmente os signos diferenciam-se pelas funções do discurso, aqui podemos seguir a classificação trabalhado por R. Jakobson que distingue seis funções da linguagem : a função referencial, a emotiva, a fática, a imperativa e a metalinguistica.

O signo corresponde ao que Agamben chama de “uma representação da linguagem”, isto é, uma construção operada pela linguagem que gera um elemento mediador das nossas operações cognitivas e comunicativas.

À semiótica não interessa, porém, reduzir-se à analítica elementar do signo mas antes dar conta daquilo que nós somos capazes de fazer com eles (os signos) e do que eles são capazes de fazer connosco, i.e., à semiótica interessa compreender as dinâmicas discursivas que operando a partir de signos, fazem gerar sentido.

Dito assim: o objecto da semiótica não é o corpo morto mas o corpo vivo. À semiótica, pelo menos na perspectiva da semiótica estrutural ou discursiva (aberta com Saussure, e depois dele com Hjelmslev e Greimas, a uma sociosemiótica) não interessa o sentido a priori, já fixado mas o sentido em situação de discurso, o devir, relativamente ao qual o analista e o protagonista podem coincidir (sujeito semiótico).

De uma analiticidade lógica fechada no signo (que caracterizou a semiótica elementar) passamos para uma analiticidade intersubjectiva aberta à significação (que caracteriza a semiótica discursiva ou dinâmica).

A passagem para a semiótica discursiva não introduz apenas um alteração no objecto (ou campo) da semiótica, mas na própria compreensão do sujeito, já não o sujeito distanciado na semiótica estrutural mas agora um sujeito participativo, patológico (pathos + logos) e produtivo, simultaneamente analista e protagonista de um processo intersemiótico marcado por diversos níveis de pertinência semiótica (impressões estésicas, práticas corporais, configurações dinâmicas, tipos actanciais).

2. “O mundo”, diz Per Aage, “é fundamentalmente um mundo de constrangimentos.”. A linguagem é o meio de que dispomos para entendermos e nos entendermos com as coisas. O modo como usamos a linguagem – enquanto operador comunicativo e cognitivo – para criar esse entendimento é o objecto da semiótica.

Como escreve J. Courtés : “A semiótica – tal como ela será aqui considerada – tem por objectivo a exploração do sentido. Isto significa, em primeiro lugar, que ela não se reduz somente à descrição da comunicação (definida como a transmissão de uma mensagem de um emissor para um receptor 1): englobando-a, ela deve dar conta de um processo muito mais geral, o da significação.

Restringir o campo semiótico à comunicação, como fazem alguns, consiste muitas vezes em postular uma “intenção” de comunicar, cujo estatuto será sempre muito difícil de precisar: a que nível, com efeito, colocar a “intenção” (psicológica, sociológica, etc.) e segundo que critérios reconhecer a sua existência? É ela somente da ordem do explícito, ou será necessário ter em conta o implícito? Noutros termos, o campo da comunicação (concebida como um fazer-saber) poderá ser delimitado por um querer-comunicar, um querer-fazer-saber? O que acontecerá com a comunicação efectiva mas não voluntária (ex: aquele que “se trai”) ou constrangedora (por uma fazer-querer-comunicar), devido a ameaça, por exemplo? (…)

A descrição da significação não deixa de colocar a questão mesma da sua possibilidade, pelo menos numa perspectiva que se quer científica. Na medida em que ela trata do sentido, a semiótica – como qualquer investigação sobre a significação – só pode ser a “transposição de um nível de linguagem num outro, de uma linguagem numa outra diferente” (GR 1970, 13). Deste ponto de vista a semiótica define-se como uma metalinguagem em relação ao universo de sentido que ela se dá como objecto de análise. Ela não se reduz por isso a uma simples paráfrase que restituiria, sob uma outra forma, os dados de base, segundo um princípio de equivalência: neste caso, com efeito, a melhor equivalência de um texto, por exemplo, é este mesmo texto.”

Se a semiótica é uma transcodificação, ela é também mais do que isso. Enquanto operação de descrição, ela deve precisar o ou os níveis de análise em que pretende situar-se: isto significa que ela considera os objectos que estuda só sob um aspecto bem determinado que lhes é comum: tal é o princípio de pertinência. Tratando de uma colecção de dados, o fazer semiótico só se exercerá na medida em que retiver apenas as suas características comuns (…), para extrair (2) o sentido, a semiótica postula que o estudo da significação só pode ser feito por abordagens diversificadas e distintas, isto é, segundo níveis(3) diferentes , definidos eles-mesmos pelo conjunto de traços distintivos comuns aos (ou extraídos dos) objectos estudados.

3. Ao longo dos últimos 40 anos vão-se tornando perceptíveis os sinais da evolução que se dá no interior da semiótica discursiva concebida na perspectiva de Hjelmslev e, sobretudo, de Greimas. Essa evolução manifesta-se através do alargamento do campo da semiótica graças à integração sucessiva de três tipos de objectos: passou-se de uma semiótica dos discursos enunciados, para uma semiótica das situações, antecipadora da actual semiótica da experiência sensível que se ocupa da análise da nossa presença no mundo enquanto portadora e produtora de sentido.

Esta abertura da semiótica em termos de objectos e problemáticas veio ajudar a disciplina a sair de uma problemática do “texto” que, na maior parte das vezes, quer de dentro, quer de fora da semiótica foi colocada de um modo de certa forma distorcido. A semiótica foi tida, durante muito tempo, como um método de análise do conteúdo, dela se esperava que dissesse o sentido dos textos, tarefa que a semiótica não poderia realizar, não por falta de instrumentos de leitura, mas por causa de um mal-entendido sobre o objecto. De facto, se os textos (assim como outras coisas) fazem sentido, isso não quer dizer que o sentido esteja presente como uma propriedade, que seja coisa a ser descoberta, colocando o semiótico como uma espécie de descobridor que escava os textos até encontrar neles escondido o tesouro, uma espécie de vampiro, segundo a imagem de Umberto Eco, que anseia sugar o sentido das coisas qual sangue de que se alimenta. O sentido é antes um tesouro peculiar, para que ele exista há que construi-lo intersubjectivamente. Porque se ele existe só pode ser, semioticamente falando, como produto da colocação em presença de duas instâncias, oferecendo uma e outra o carácter de entidades organizadas, competentes para interagir em situação, uma enquanto “sujeito”, outra enquanto “objecto”.

Nas últimas décadas um conjunto de princípios gerais estiveram na origem de uma evolução teórica que conduziu inicialmente à radicalização dos fundamentos da semiótica narrativa clássica – uma teoria da acção “em papel” foi pouco a pouco substituída por uma teoria do sentido em acto – e, depois, ao seu aprofundamento e à sua reinterpretação no quadro de uma intersemiótica contínua. Os princípios gerais que proporcionam essa evolução podem ser, em síntese, identificados: em primeiro lugar, na análise dos sistemas de representações e de valores, o semiótico deve evitar ater-se aos termos polares (vida/morte; dentro/fora; mesmo/outro) utilizados para manifestar as categorias semânticas de base, devendo, em compensação, concentrar a atenção nas estratégias de sentido fundadas na exploração do termo complexo (ao mesmo tempo, isto e o seu oposto), que subsume os precedentes, mas também do termo neutro (nem um nem outro) que torna possível a sua superação e, sobretudo dos termos subcontrários que regem espaços instáveis e designam zonas de transição, devires (já não totalmente isto, mas ainda não verdadeiramente o oposto); em segundo lugar, tratando-se de dar conta dos processos de construção do sentido em acto, o semiótico deve evitar considerar qualquer elemento de uma relação isoladamente dos outros, por exemplo “um sujeito” independentemente de “outro” sujeito/objecto.

Luce Irigaray escreveu que “a significação devia exprimir o corpo e a carne e não cortá-los, separá-los.” (Luce Irigary, “Les couleurs de la chair”, Sexes et parentés, Paris, Minuit, 1987, p. 173.) . A abertura ao sensível que passa a caracterizar alguma da semiótica mais recente representa um momento de avanço importante ao nível dos estudos semióticos contribuindo, ainda, para, digamo-lo de modo rude, “desempatar” uma visão da semiótica bipartida entre as análises “gerativas” (mais ou menos inspiradas na teoria greimassiana) e as análises “interpretativas” (identificáveis com a semiótica de Umberto Eco herdeira de Peirce).

Em relação aos “semióticos interpretativos” Geninasca comenta, de um modo que mesmo que se considere parcial não deixa de ser pertinente, que: «Relativement peu soucieuses de l’organisation des énoncés verbaux, les sémiotiques interpretatives on ceci de particulier qu’elles subordonnent la question de la cohérence discuirsive au double respect d’un savoir de nature encyclopédie et des príncipes de la pensée logique dont dépend le vraisemblable, celui de notr « monde» ou celui d’un quelconque «monde possible». »

Nesta perspectiva, a significação discursiva dos “textos” reporta-se fundamentalmente à análise do encadeamento de determinados “cenários” sem se considerar, pelo menos de forma decisiva, os esquemas semânticos que condicionam a interpretação. Identificar os cenários, qualquer que seja a sua manifestação linguística, estabelecer entre eles relações do tipo inferencial (relações de dependência unilateral), situá-las no quadro do espaço euclidiano e do tempo linear que lhes são próprios tal é, em traços gerais, a tarefa da semiótica interpretativa.

Um tal tratamento dado ao problema da interpretação tende sempre a ignorar a função dialógica que pode revestir dificuldades ou impossibilidades de sentido, não levando em consideração que determinadas dinâmicas de paixão enunciativa – por exemplo sentimentos de frustração ou de cólera do leitor – desempenham um papel fundamental na produção de sentido.

José Augusto Mourão nos recorda que “A morfologia de Propp excluía a dimensão passional dos textos, limitando-se às funções e acções. O lector in fabula de Eco, por exemplo, não experimenta qualquer paixão. E, contudo, a narrativa é uma concatenação tanto de acções como de paixões que se convertem umas das outras.” (José Augusto Mourão, « Ego affectus sum”, IN Mª Lucília Marcos e A. Fernando Cascais, Corpo, Técnica e Subjectividades, RCL nº 33, Relógio d’Água, Lisboa, 2004, p. 174.).

Foi no decorrer dos anos 60, em grande parte sob a influência da obra de L. Hjelmslev que um pequeno grupo de lexicólogos e linguistas franceses (principalmente A. Guiraud, R. Barthes, B. Pottier, F. Mathoré e A.J. Greimas) iniciou um movimento de reflexão crítica no seio da corrente estruturalista, bem expresso, por exemplo, no importante ensaio de B. Pottier publicado em 1967, na véspera da tradução francesa da obra de Hjelmslev, na revista Critique , movimento esse que iria desencadear, em particular, uma renovação completa da problemática semântica. Isso mesmo é comprovado com o aparecimento de novos métodos, como a análise sémica, de novos instrumentos de descrição e análise, como o quadrado semiótico, prefigurado por A.J. Greimas, em 1966, na sua Semântica Estrutural , visando, na esteira de Jakobson, uma tipologia da relação de “diferença” relativamente aos objectos semióticos.

O desenvolvimento das estruturas elementares da significação, assim iniciada, terá continuidade, ainda que sob a influência da edição da obra de Propp em 1970 os semioticistas sejam orientados numa outra direcção (ainda que complementar da primeira). Surgem-nos, neste contexto, uma série de análises estruturais da narrativa, baseadas no reconhecimento das estruturas ditas de “superfície”, em que os conteúdos mínimos previamente categorizados (em nível semântico “profundo”) investem em figuras do mundo, determinando a emergência de objectos de valor face a sujeitos de carácter antropomorfo susceptíveis de os manipularem de acordo com certas regularidades.

É conhecida a crítica então desenvolvida por Greimas, no seu prefácio à Introduction à la Sémiotique Narrative et Discursive de J. Courtés, apontando duas espécies de fraquezas ou insuficiências: «Certos semióticos não souberam ter em conta os resultados de um Dumézil ou de um Lévi-Strauss, que evidenciaram a existência das estruturas profundas, organizadoras dos discursos, mas subjacentes às manifestações da narratividade de superfície de tipo proppiano” , “morfologia” que, de resto, mereceu, igualmente, um exame crítico por parte de Greimas que lhe apontou várias lacunas ao mesmo tempo que lançava as bases da sua semiótica da acção.

Posteriormente, seria aos problemas da colocação em discurso das estruturas semio-narrativas pertencentes aos dois níveis trabalhados pela semiótica narrativa (“profundo” e de “superfície”) que a semiótica consagrou o essencial dos seus esforços. Dito de outro modo, o nível profundo a que pertencem as estruturas elementares (tão bem analisadas por Lévi-Strauss) e as estruturas discursivas serão objecto da semiótica discursiva; o nível de superfície será objecto da semiótica narrativa, mas estas demarcações técnicas mascaram um projecto de maior fôlego, uma teoria geral do fazer semiótico, de ambição axiológica, de que um primeiro momento se encontra desenvolvido na elaboração da já referida semiótica da acção.

A Semântica Estrutural, começa com uma análise de Greimas onde nos é afirmado que, sendo a significação “omnipresente e multiforme” , a ponto de a realidade poder ser definida como um “mundo de significação”, o denominador comum das ciências humanas é a pesquisa acerca da significação. Diz-nos Greimas que “se as ciências da natureza se indagam para saber como são o homem e o mundo, as ciências humanas, de maneira mais ou menos explícita, interrogam-se sobre o que significam um e outro”. Apesar disso, considerava Greimas não existir uma disciplina adequada para responder capazmente a esse questionar do sentido das coisas humanas.

Perante o facto (detalhadamente examinado por Greimas na sua interpretação do esquecimento a que a semântica fora votada e na sua crítica à linguística bloomfieldeana e ao formalismo behaviorista) de não haver uma disciplina científica adequada para tratar a significação, Greimas propõe-se “reflectir acerca das condições pelas quais seja possível um estudo científico da significação” .

Bakhtin ensinara que o dialogismo é o fundamento de toda a discursividade . A análise do discurso, contemporânea de Greimas, defendia que todo o discurso se constitui numa relação polémica com outros discursos, o que significa que o discurso não nasceria, como era por vezes sua pretensão, de um “voltar-se para as próprias coisas”, antes se formava, hipoteticamente, por intermédio de interdiscursividades , valendo-se, para tal, o analista da sua “memória discursiva”.

A proposta de análise discursiva lançada por Greimas é em tudo diferente aquela que, nas palavras do autor: busca uma explicação extra-linguística para a significação; funda-se numa tradição pseudo-saussuriana; postula o formalismo em linguística e faz “semântica, à maneira de Monsieur Jourdain, sem o saber”; procura “explicações qualitativas tradicionais”; baseia-se no beletrismo e, portanto, critica a criação de uma metalinguagem descritiva; vale-se da introspecção ou das categorias da retórica clássica para a análise da significação.

A partir daqui, começa a definir-se o projecto semiótico que Greimas vai construindo e que se pretende: alicerçado na verdadeira tradição saussuriana; fundado no princípio da imanência; distinto do “formalismo” que preconiza que a linguística nada podia dizer sobre o conteúdo; estabelecendo uma semântica científica, concebida como a “união, pela relação de pressuposição recíproca, de duas meta-linguagens: uma linguagem descritiva ou translativa, onde as significações contidas na linguagem-objecto poderão ser formuladas, e uma linguagem metodológica, que defina os conceitos descritivos e verifique a sua coesão interna” .

O discurso greimasiano é decididamente fundador, rompendo com uma determinada visão da linguística, instaurando um novo domínio de pesquisa, mas, também, reinstituindo uma memória disciplinar através da filiação na tradição saussuriana e hjelmsleviana, porta de entrada para o acolhimento da semiótica a propostas de autores como Brödal, Jakobson, Lévi-Strauss, Dumézil, bem como Bergson e Merleau-Ponty entre outros.

É bem sabido que Greimas reinterpreta a obra de Saussure, não se limitando a segui-la e, muito menos a seguir algumas leituras suas contemporâneas. À época da publicação da Semântica Estrutural, vai-se tornando claro que Greimas e os semióticos unidos em torno do projecto da revista “Langages” se afastam da definição apresentada por Saussure no Curso, segundo a qual a “a semiótica é a ciência que estuda os signos no seio da vida social”, para proporem uma teoria da significação que dê conta das condições de produção e de compreensão do sentido.

Encontramos em Moisés Lemos Martins uma compreensão da semiótica claramente influenciada pelo projecto greimasiano: «Não circunscrevemos a semiótica ao regime do signo. Pensamo-la antes na confluência de dois níveis semânticos não sígnicos: o da textualidade/discursividade e o da enunciação. E enquanto num caso acentuamos o domínio da escrita, o domínio do objecto textual, e suspendemos a relação com o contexto, no outro, colocamos a ênfase nas dimensões da prática discursiva, interacção, intersubjectividade, reflectividade, intencionalidade e comunicação. Quer isso dizer que pensamos a semiótica como disciplina da significação» e já não como “ciência dos signos” (Moisés Lemos Martins, Semiótica. Programa e Metodologia, Relatório para provas de agregação, Universidade do Minho, pp. 1 e 2; Apud, A. Fidalgo, “Da semiótica e seu objecto”, IN Comunicação e Sociedade 1, Cadernos do Noroeste, Série Comunicação, Vol. 12 (1-2), 1999, pág. 19-20).

A função semiótica, dito do modo mais simples, consiste em colocar a questão de saber como a significação acontece e como a existência semiótica advém aos “sujeitos”. O postulado semiótico é o de que a significação não está nas coisas mas resulta da sua colocação em forma (que pressupõe uma determinada performance por parte de um sujeito “competente”) resultante da relação entre sujeito e objecto; a enunciação (outro dos conceitos decisivos mencionados por Moisés Martins) é o acto pelo qual o sujeito faz o objecto ter sentido e, correlativamente, o enunciado aparece como o objecto cujo sentido faz o sujeito ser.

Actualmente a semiótica, além de uma teoria geral e sintagmática da significação, apresenta-se, também, como uma teoria gerativa. Desde a publicação do Dicionário por Greimas e Courtés, que a semiótica concebe o sentido como sendo gerado “sob a forma de investimentos de conteúdos progressivos, dispostos em patamares sucessivos, indo dos investimentos mais abstractos aos mais concretos e figurativos, de tal maneira que cada um dos seus patamares possa receber uma representação metalinguística explícita.” . A economia geral de uma teoria semiótica, isto é, a disposição dos seus componentes uns em relação aos outros na perspectiva da geração é, aí, chamada de percurso gerativo.

Greimas e Courtés reconhecem, no percurso gerativo, dois componentes: um sintáctico e um semântico, distinguindo-se, assim, as estruturas semio-narrativas das estruturas discursivas. Aquelas apresentam dois níveis: um profundo, onde estão a sintaxe e a semântica fundamentais, e um de superfície, que contém a sintaxe e a semântica narrativas. O nível das estruturas discursivas apresenta a sintaxe discursiva, cujos procedimentos são a actorialização, a temporalização e a espacialização, e a semântica discursiva, cujas operações são a tematização e a figurativização.

4. Avançamos assim de uma Semiótica pensada como “ciência dos signos” e daqui para uma “ciência dos signos no seio da vida social” (Saussure), para uma Semiótica pensada como ciência da significação, da enunciação e da discursificação, postulando: a imanência e geratividade do sentido; a performatividade e competência do sujeito; a intersubjectividade semiósica; a continuidade da semiose; o carácter decisivo do contexto; a colocação em discurso e em situação dos processos de significação; o primado da intersemioticidade; o envolvimento de estruturas páticas e de estruturas lógicas ligadas às práticas significativas, enunciativas e discursificativas.

1 responses to “Semiótica: Objecto, Sujeito e Prática

  1. Caro professor,

    vamos sentir a sua falta. Para a semana envio o texto, proposta para “aproximações”.
    Logo se verá se é digno de exposição.

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